Um lance de dados

A Mostra Multi foi criada em 2020, em plena pandemia de COVID-19, com o objetivo de se tornar um espaço digital para estimular a criação artística e promover encontros, contribuindo para amenizar os efeitos da crise. Nesses dois anos a Mostra revelou um enorme potencial da comunidade acadêmica da UFOP para a produção de obras e eventos culturais em meios digitais. Foram produzidos vídeos, podcasts, exposições, apresentações artísticas gravadas e ao vivo, jogos, debates, palestras e oficinas que demonstraram a importância da ocupação do ciberespaço. 

A 1ª Mostra Multi propôs o tema "interações", estimulando uma reflexão sobre a forma de contato a que estávamos circunscritos. Na segunda edição o debate ganhou maior densidade com uma pergunta provocativa: "em que bolha você vive?", buscando evidenciar os limites que os nichos no espaço online colocam em relação às informações disponíveis e à compreensão das realidades vividas. Em 2022 a Mostra Multi traz o tema "um lance de dados", que apresenta uma referência em dois tempos: por um lado nos apropriamos do título do poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso, de Stéphane Mallarmé (1842-1898), e por outro pautamos a discussão sobre as informações pessoais, entendidas em nosso tempo como ativos poderosos para que empresas e governos desenhem nossos perfis com margens de erro cada vez menores. 

Um lance de dados jamais abolirá o acaso foi publicado pela primeira vez em 1897, na revista francesa Cosmopolis. Na época ninguém entendeu nada. Mallarmé trouxe o branco da folha de papel para o primeiro plano, explorando possibilidades visuais e sonoras inesperadas. Foi um chamado para a materialidade do suporte, algo que daria o tom para o desenvolvimento de pesquisas das vanguardas concretistas ao longo da primeira metade do século XX. Mallarmé foi além: ele se serviu da diversidade de tipos, dimensões e estilos gráficos, articulando as formas das palavras ao espaço do suporte para sugerir significados e modos de leituras. No final do século XIX as possibilidades técnicas estavam dadas, coube a Mallarmé transformá-las em arte, algo semelhante ao que Toulouse Lautrec fez, no mesmo período, com os cartazes de espetáculos do Moulin Rouge e do Folies Bergère. 

Quando falamos em lance de dados, cento e vinte e cinco anos depois de Mallarmé, estamos vislumbrando outra realidade. É muito significativo quando o ex-agente da CIA e da NSA descreve o estado da arte do trabalho de espionagem nos primeiros anos do século XXI: "... participei da mudança mais significativa da história da espionagem estadunidense - da vigilância direcionada a indivíduos à vigilância em massa de populações inteiras. Ajudei a tornar tecnologicamente viável que um único governo coletasse todas as comunicações digitais do mundo, que as armazenasse por eras e fizesse buscas nelas à vontade." (Snowden, 2019). O grande lance das estruturas de poder no contexto das tecnologias de informação são os dados. Mais do que instrumentos que vislumbram o consumo de mercadorias, uma boa estratégia de predição de comportamentos permite o controle de populações inteiras.

A diferença entre predição e prescrição de ideias e comportamentos é de apenas algumas letras, e a Mostra Multi segue em seu esforço para repercutir questões da cibercultura na comunidade da UFOP. Assim como Mallarmé, que percebeu que a arte da vida moderna passava pela articulação dos recursos técnicos disponíveis, da mesma forma nos questionamos sobre o que podemos produzir considerando ferramentas digitais. Participe conosco, envie sua proposta artística! Crie obras digitais em sua área de conhecimento, divulgue a ciência de forma criativa!!!

Se você se interessar em saber mais sobre o poema de Mallarmé, pode acessar aqui o poema em francês (na versão original, de 1896). Pode também acessar este vídeo, que traz uma legenda em português.

Se você tiver interesse em saber mais sobre a história de Edward Snowden, indicamos seu livro Eterna Vigilância, trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Editora Planeta, 2019.